"THE SANDMAN" - 2022
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Tenho que admitir que nunca fui muito fã de quadrinhos ou HQ durante toda a minha vida, mas após ler alguns livros de Neil Gaiman me senti compelido a ler sua obra mais famosa, a maravilhosa coletânea da Vertigo sobre o universo do personagem Sandman. E para minha grata surpresa todos os conflitos e temas complexos dos livros do escritor estão lá, seja nos encontros e diálogos sagazes entre deuses e personagens mitológicos, numa mistura com conexões inusitadas que somente Neil Gaiman consegue realizar. Tudo isso, ainda ilustrado por uma arte gráfica deslumbrante de Bill Sienkiewicz, Dave McKean, Sam Kiath, Charles Vess e outros.
No entanto, não sou daqueles fãs xiitas que desejam ver todos os traços das HQs fielmente transpostas para a tela, mesmo por que acredito que exista espaço ou liberdade criativa para que uma adaptação audiovisual baseada em quadrinhos, justamente para dar a obra uma certa originalidade e frescor. Geralmente, quando assisto algum tipo de adaptação ou remake sempre fico ansioso e atento para compreender e visualizar a nova visão do realizador.
Não é por que sou fã do escritor, mas acredito que a obra que tantos diziam ser intransponível para a TV ou cinema recebeu um deslumbrante, ousada e ao mesmo tempo respeitosa adaptação através dessa série produzida pela Netflix. Se por um certo lado, sinto falta de ver algo novo que se desprenda das ilustrações da HQ, fico ao mesmo tempo deslumbrado em ver transposto todo aquele rico universo em movimento live-action na tela da TV.
As cenas do primeiro episódio são tudo que qualquer fã do quadrinho deseja ver adaptado na tela. Além disso, a participação do autor na produção conseguiu garantir a manutenção dos diálogos essenciais dos quadrinhos. O protagonista Sandman, a entidade andrógina que governa o mundo dos sonhos e que durante a história recebe muitos nomes, seja o próprio sonhos ou Morpheus, é perfeitamente construído e representado pelo ator Tom Sturridge (não consigo imaginar outra personificação para o personagem). A interação entre Sandman e os seres humanos que o capturam acidentalmente durante um ritual que almeja sequestrar sua irmã a morte torna-se grandioso através de seu silêncio, com o ser perpétuo abstendo-se proferir qualquer palavra para seus indignos algozes durante mais de um século.
Após sua grande escapa da redoma de vidro, as consequências para mundo que permaneceu mais de um século sem sonhar ou para poucos escolhidos que permaneceram dormindo e vivendo em seus sonhos durante esses anos todos e o retorno de Sandman para seu grande castelo em ruínas estão retratados de forma perfeita. Até mesmo a brincadeira com as figuras bíblicas de Caim e Abel cujas desavenças são atenuadas por um elemento onírico materializado na forma de um fofo dragão.
A trajetória de Sandman em busca de seus instrumentos mágicos, o elmo, a algibeira e o rubi, ressaltando o valor filosófico de cada um deles no universo do sonho trazem momento icônicos da interação desse ser perpétuo com seres humanos como John Dee (David Thewlis) como um psicótico viciado em honestidade, Johanna Constantine (Jenna Coleman) como um médium sarcástica com valores distorcidos, Hob Gadling (Ferdnand Kingsley) como um humano que ama a vida em todos os sentidos desafiando a compreensão de um perpétuo.
Além desse interações pontuais, fica impossível esquecer os episódios especiais dedicados a encontros com outros seres sobrenaturais, seja o comovente encontro de Sandman com sua irmã perpétua a Morte (Kirby Howell-Baptiste) trazendo uma nova concepção sobre esse um evento na vida de qualquer humano, mas que pode re-dimensionar a vida em si, tanto para nós humanos quanto para essas entidades. Ou a inesquecível descida de Sandman ao inferno em busca de seu elmo roubado por um demônio, quando ele tem que enfrentar o maravilhoso Lúcifer (Gwendoline Christie) num confronto surpreendentemente desconcertante, fora uma pista sobre o real valor ou poder dos sonhos.
Um episódio garrafa no meio da temporada, onde praticamente toda a ação ocorre dentro de uma lanchonete 24 horas, demonstrando o perigoso poder do rubi de Sandman nas mãos de John Dee consegue discutir temas tão sombrios e reveladores que deixam o espectador atônito. Deparamo-nos em um confronto entre verdades e mentiras, sonhos e desejos no mundo real. Até que ponto necessitamos satisfazer ou podemos nossos desejos? Até onde os sonhos nos impulsionam a manter a esperança? O quão longe a honestidade desenfreada nos levará? A verdade realmente liberta ou os sonhos e ilusões podem ser mais poderosos do que a dura realidade?
A introdução precoce do vilão Coríntio (Boyd Holbrook) consegue costurar melhor as histórias entre os episódios, além das interações entre Sandman e seus assistente como a bibliotecária Lucienne (Vivienne Acheampong), o corvo Matthew (Pattton Oswalt) e Mazikeen (Cassie Clare) trazem a tona uma noção maior do significado desse mundo onírico onde criaturas transitam entre sonhos e pesadelos. Um universo onde demônios podem ser domados através de sonhos com o paraíso e até pesadelos ousam sonhar.
O último segmento da temporada trás um novo personagem que representa uma poderosa entidade humana chamada de Vórtice, um ser que surge aleatoriamente a cada século e tem o poder de invadir o mundo dos sonhos e quebrar as barreiras entre os sonhos dos outros seres, quase como um agente invasor que revela todos os segredos, mentiras e desejos de cada um. Nesse caso, o tal Vórtice está personificado em Rose Walker (Vanesu Samuryai), uma adolescente forçada a abandonar o irmão caçula, Jed (Eddie Karanja) durante a separação dos pais. O trajetória de Rose se costura ao reino de Sandman através de dois personagens secundários, Unity Kincard (Sandra James-Young), uma das vítimas colaterais do sequestro de Sandman e de Coríntio, o vilão que consome os olhos de suas vítimas humanas que almeja o poder do Vórtice para destruir o seu criador, Sandman.
Não existe como não se deslumbrar com esse universo onírico recheado de metáforas e discussões filosóficas sobre a representatividade dos sonhos, pesadelos, desejo, medo e sofrimento. Uma série de qualidade estética fabulosa com personagens inesquecíveis, que ainda por cima dão um show de inclusão de gênero, cor, orientação sexual, religião, etnia e classe social, seja através da inclusão de um elenco diversificado, agregando maior participação de personagens femininos, apresentação de relacionamentos afetivos dos mais diversos e personagens únicos que transitam entre os gêneros de forma fluída, a maravilhosa Lúcifer ou o perpétuo Desejo (Mason Alexander Park), além é claro de incluir uma performance de maravilhosa de Hal (John Cameron Mitchell) como uma drag queen.
Impossível se satisfazer somente com esses dois episódios, sedento por mais histórias do universo onírico desses personagens aterrorizantemente belos que nos fazem viver nos sonhos e sonhar com a vida.
Crítica por: Fabio Yamada
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