"DECISION TO LEAVE" - 2022
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A arte do cinema consiste em grande parte de duas ações ou forças complementares, a primeira seria a capacidade de observação de quem cria as narrativas ou filma as imagens e a segunda de se colocar no lugar do outro ou imersão/ identificação de que assiste ou consome as histórias. Tanto a primeira quanto a segunda, dependem fundamentalmente do olhar e da comunicação.
O novo filme de Park Chan-Wook brinca com a arte de fazer cinema evocando ou homenageando clássicos do cinema noir de Hitchcock como “Vertigo”, com direito a uma femme fatale inusitada e uma trama que de alguma forma lembra ousado cinema de Paul Verhoeven de “Instinto Selvagem”.
Na história temos, um investigador Hae-jun (Park Hae-il) metódico que sofre insônia que começa a investigar a morte de um homem que caiu ao escalar uma montanha numa floresta próxima a cidade. Inicialmente, não fica estabelecido que foi um caso suicídio ou assassinato. As primeiras suspeitas dele recaem sobre a bela viúva que aparentemente não demonstrou o luto esperado pela perda. A bela Seo-rae (Tang Wei) é uma imigrante chinesa que não conhece bem o idioma coreano e se utiliza do celular para traduzir algumas expressões. O investigador se aproveita de suas noites insones para vigiar a suspeita de longe. Os artifícios utilizados pelo diretor para que o investidor adentra pela rotina de Seo-rae são maravilhosamente belos, um arte de como fazer cinema.
O diretor compara o desenrolar de uma investigação criminosa como as preliminares de uma relação amorosa, onde o amante investiga o ser amado, onde o criminoso tem muito mais perguntas, neste caso, aquele que comete o crime de amar.
Aqui o diretor demonstra que na verdade o amor pode ser considerado sim, uma via de mão única, quase que um sentimento platônico. Pois o verdadeiro afetado é o ser que ama, o ser amado simplesmente está lá, mas na maior parte das vezes nem percebe que está sendo amado. Afinal, apenas que sente o amor de verdade é aquele que ama e o ser amado na maior parte das vezes apenas reconhece as demonstrações de amor.
O verdadeiro amor é fruto da observação do outro, na identificação de pequenos códigos e necessidades que aprendemos a observar em nosso parceiro. Por isso muitas vezes, as pessoas se revelam de verdade através do amor. No filme, o investigador realiza pequenas e sinceras demonstrações de amor pela esposa, com a preparação de um sopa para o jantar ou ao observar as pequenas necessidades e fraquezas de quem está ao seu lado. Talvez por isso, ele seja o único a perceber os atos de bondade de Seo-rae para com uma idosa ou dela aprender o idioma coreano ao assistir filmes antigos na TV. No entanto, o filme transita o tempo todo entre essas pequenas observações e abstrações a respeito da vida de um e do outro, que na superfície pode representar a culpa ou não da suspeita viúva que seduz o incauto detetive, mas que num plano mais profundo se revela uma complexa investigação sobre o amor.
As grandes surpresas do filme não estão verdadeiramente nas reviravoltas mirabolantes que estamos acostumados a assistir nos filmes coreanos ou de Park Chan-Wook. O verdadeiro mistério não está mais em que matou quem, mas sim em como o ser amado vai perceber que está sendo amado e que o ser amador realmente é capaz de amar, as reviravoltas estão em como esses seres trágicos serão capazes de expressar e decodificar essas demonstrações de amor.
Se na primeira parte do filme vamos nos surpreendendo com as pequenas descobertas e visões do investigador que se apaixona pela suspeita, na segunda metade, somos conduzidos pela suspeita que persegue e observa seu algoz. Ela desvenda pequenos detalhes, obsessões e medos do ser amado, que mais tarde se transformam em pequenas demonstrações de amor filtradas ou transformadas por sua visão deturpada da vida. Demonstrações estas que devem se decodificadas por Hae-jun.
No final, percebemos o poder transformador do amor é muito semelhante ao do cinema, que através do olhar consegue traduzir, decodificar e comunicar sentimentos e emoções, que a princípio podem ser invisíveis ou indecifráveis para quem vê, mas que possuem um imenso poder transformar quando identificadas ou compreendidas.
Muitas vezes podemos achar clichê quando dizem que o verdadeiro amor é aquele que liberta, mas o verdadeiro amor é aquele que se entrega sem pedir nada em troca, que não aprisiona e muitas vezes se permite partir. Na minha visão, um filme sempre é uma grande demonstração de amor, fruto da observação profunda da humanidade ou de uma sociedade, que o criador decodifica, transforma e traduz em imagens, Imagens essas que são entregue para o público captar através do olhar, incapazes de interagir diretamente com elas, mas que quando imersos nesse universo são capazes de identificar ou descobrir novas formas de interagir com o mundo ou consigo mesmo. O criador, aquele grande amador da humanidade abre mão de suas visões e compartilha sem pudores suas idéias e sentimentos, sem poder exigir nada em troca. Um verdadeiro ato de desprendimento, um salto no escuro, uma demonstração de amor para com o público. A obra é uma mensagem decodificada através do olhar, que assim como o amor tem o poder de transformar ou não o ser amado. O criador fica camuflado e submerso na obra, tomando a sábia decisão de abrir mão de sua criação.
Crítica por: Fabio Yamada.
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