Crítica: A Escada

"A ESCADA"  - 2022

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Existe um atrativo especial naquelas produções baseadas em fatos reais que conseguem atrair o espectador de uma forma irresistível, como se essas histórias realmente tivessem um valor maior que outras produções. O programas ou derivados angariados no gênero “True Crime” permanecem em alta na audiência das produções de TV.

No entanto, é maravilhoso quando uma obra consegue se utilizar do peso do tipo de gênero dessas produções, principalmente quando a história é sobre um caso controverso e de muito sucesso na época, recheado de reviravoltas e surpresas, criando um novo tipo de narrativa diferente das inúmeras outras obras derivadas do crime. O criador da série Antonio Campos consegue construir uma história metalinguística sobre um crime real cujo o desenrolar dos acontecimentos e julgamento está sendo filmado por uma equipe de documentaristas que aparentemente são totalmente parciais e contaminados pelo envolvimento afetivo do diretor e de outros membros da equipe com a família da vítima e do acusado, interferindo diretamente no rumo das investigações. 

Se somente isso já não fosse fabuloso por si só, o diretor consegue sutilmente criar uma metáfora com os acontecimentos reais da história, utilizando-se de fatos, comportamentos e diálogos dos personagens para discutir os conceitos sobre o que é verdade, qual a relatividade de uma verdade e como conseguimos distorcer, transformar ou fugir de nossas próprias verdades.

Tudo isso aparando por um elenco incrível, direção de arte e fotografia requintadas e um roteiro brilhante. 

Na história temos um casal feliz, com uma vida financeira abastada e vários filhos com idade adulta. O casal é formado por Michael (Colin Firth, especialmente comovente), um escritor aspirante a político e Kathleen (Toni Collette fabulosa), como uma empresária provedora do sustento da casa e da família de Michael. Numa bela noite as vésperas das festas de final de ano,  Michael liga para o resgate afirmando que a esposa caiu da escada e apresenta um grande sangramento na cabeça e que apesar de estar inconsciente ainda respira. Kathleen acaba não sobrevivendo a queda e Michael acaba sendo acusado pelo assassinato da esposa.

Aos poucos através da história vamos descobrindo, que o aparente casal feliz também tem seus problemas financeiros e de relacionamento amoroso. A imensa família feliz com vários filhos, na verdade é composta em sua grande maioria pelos filhos biológicos e adotivos de Michael. A empresa na qual Kathleen trabalha está em processo de falência, despedindo os funcionários gerando grande pressão nela e no marido. Os filhos de Michael cada um a seu jeito demonstram grande amor e gratidão pela madrasta, mas a maioria deles jamais acreditaria que o pai fosse capaz de matar a esposa. Kathleen na verdade é a segunda esposa de Michael e no passado a mãe de duas das garotas também sofreu incidente relacionado a uma queda de escada. A vida amorosa de Michael apresenta alguns detalhes pouco ortodoxos e passíveis de muitos julgamentos. Essas revelações, que para quem acompanhou o caso na época ou para aqueles que assistiram os documentários derivados da história não chegam a ser nenhuma novidade, no entanto, a forma como os diretores vão apresentando esse detalhes, descamando suavemente cada camada com a intenção de criar uma narrativa própria independente da realidade do caso é extraordinária.

O elenco apresenta vários nomes conhecidos como o de Michael Stuhlbarg, que rouba a cena como o astuto advogado de defesa de Paterson, Patrick Schwarzenegger como o filho presente, Dane DeHaan como o filho problema do primeiro casamento, Sophie Turner e Odessa Young como as filhas adotivas do protagonista, Olívia De Jonge como a filha revoltada e Rosemarie DeWitt como a irmã vingativa e neurótica de Kathleen, além é claro de Vincent Vermignon e a maravilhosa Juliette Binoche como membros da equipe documentarista francesa que se envolve afetivamente com o acusado e sua família, ultrapassando em muito a linha do moralmente aceitável.

A real autoria ou existência do crime apesar de serem questões extremamente sedutoras e angustiantes para o público em geral, não parece ser o foco principal dos criadores da série. Eles parecem muito mais interessados em apresentarem o processo no qual uma história pode ser transformada, distorcida e modificada com o passar do tempo e a partir de diferentes pontos de vista. Além é claro de se utilizar da metalinguagem, para apresentar que uma história sempre terá como filtro o viés de um narrador, que está inserido em um contexto histórico, afetivo e espacial. Isto quer dizer, que a mesma história pode ser apresentada de inúmeras forma diferentes, com cada detalhe suprimido ou evidenciado conforme a vontade ou displicência do narrador. Todos os tipos de lentes tem o poder de distorcer a visão de uma realidade, estejam essas lentes posicionadas dentro de uma câmera ou na mente de quem assiste ou documenta essa inusitada e surpreendente ficção que insistimos chamar de realidade.

Todos os fatos, ou as ditas verdades, podem ser contaminadas, intencionalmente ou de forma inconsciente, inclusive a imagem ou conceitos que temos de nossa trajetória de vida. As vezes inventamos tantas mentiras e versões de nós mesmos para proteger aquilo que existe de mais frágil e valioso em nosso interior, que nos distanciamos tanto daquela imagem que um dia acreditamos ser, que não conseguimos mais nos reconhecer, podendo incorrermos no risco de acreditar nas versões que os outros construíram e afirmam ser nosso verdadeiro eu.

Crítica por: Fabio Yamada.

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