"CRIMES DO FUTURO" - 2022
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Alguns podem até dizer que o “body horror” está na moda. No entanto, acredito que ele nunca saiu de moda, ainda mais no cinema e principalmente no de Cronenberg. A definição da body art como conhecemos na cultura atual surgiu no final dos anos de 1960, com a utilização do corpo humano como parte de uma performance, tenta demonstrar que o ser humano deve estar inserido ou pelo menos conectado de alguma forma com a arte que consome.
No entanto, as raízes da body art estão conectadas com as pinturas corporais ritualisticas dos primórdios da humanidade, onde os desenhos e cores decodificavam algum símbolos religiosos ou social.
Na nossa sociedade atual, as tatuagens, piercings, alargadores, próteses estéticas, tinturas de cabelos, lentes de contato coloridas e procedimentos estéticos apesar de serem considerados rotineiros e supérfluos, também representam uma espécie de body art, onde o usuário comum tenta, através da deformação ou correção da sua plástica corporal passar algum tipo de mensagem.
O que o nosso querido e visionário diretor canadense realizou nesse filme, foi levar esses conceitos ao extremo, seja na forma da construção e exposição dessa arte ou na profundidade corporal ou biológica das intervenções. Se hoje em dia, a maior parte dos procedimentos se restringem a superfície da pele de seus interlocutores, quem sabe no futuro teremos um aprofundamento dessas intervenções almejando conseguir, literalmente, uma beleza interior.
No entanto, na visão do diretor e de muitos artistas, a arte não pode ter apenas uma finalidade estética, devendo, numa visão bauhausiana, ela deve exercer e sofrer interferências do cotidiano humano, interligando-se organicamente as outras formas de arte, adaptando-se e evoluindo com o objetivo final de exercer algum tipo de funcionalidade.
Chegamos então a esse universo futurístico e distópico onde os grandes artista são capazes de expressar sua arte com a criação de novos órgãos internos, funcionais ou não, que podem ser tatuados cirurgicamente com algum tipo de mensagem e expostos ao mundo durante procedimentos cirúrgicos performáticos, onde cirurgiões tornam-se escultores e pintores (já não são?).
Se hoje skinheads raspam as cabeças, muçulmanos são obrigados a terem barbas compridas, judeus são submetidos a postectomias e mulheres africanas sofrem clitoridectomias como formas de manifestações culturais, religiosas, sociais e políticas; no filme de Cronenberg alguns humanos são submetidos a cirurgias no trato digestivo para poderem digerir plástico, simbolizando um tipo de manifestação politico-social onde a realidade se tornou artificial e o homem necessita evoluir para poder se nutrir dessa artificialidade, literalmente comendo plástico.
Em determinado momento do filme, uma personagem afirma que “a cirurgia é o novo sexo”, uma frase um tanto controversa e sinistra. Se analisarmos um pouco essa idéia, ambas manifestações são de alguma forma viscerais e orgânicas, despertam um certo fascínio e são cercadas de algum tipo de tabu, ambas envolvem algum tipo de interação física com orifícios, incisões, penetrações e secreções, existem sentimentos e sensações que misturam dor e prazer, simbolizam de alguma forma uma interação de íntima ligação, geralmente são praticadas com com a desculpa de um bem maior, seja pela criação de vida ou aprimoramento de vida ou para salvar vidas, mas acabam sendo de alguma forma banalizadas (na visão dos mais conservadores e hipócritas) com o único e exclusivo objetivo de se chegar ao prazer hedonista.
Interessante observar a visão do futuro do diretor nesse filme, onde as paisagens de centros urbanos modernos e com enormes edifícios envidraçados são substituídas por edificações em ruínas com paredes com as tintas descascando típicas de zonas portuárias de cidades litorâneas. Uma mistura anacrônica de objetos tecnológicos com uma plasticidade estética extremamente orgânica e visceral, tipicamente cronenberguiana, com uma cenografia e figurino retrô. A fotografia e direção de arte que valorizam os tons arenosos, queimados e escuros, que emulam as cores de pele dos personagens, reforçando o processo de desumanização, um efeito que resulta quase na transformação desses seres humanos em mais alguns objetos de cena.
O filme é um manifesto político que reforça a idéia de que ao transformarmos o mundo a nossa volta acabamos nos sofremos as mutações resultantes desse processo, quase que uma evolução adaptativa, como se nos transmutasse-mos para sobrevivermos em meio a um mundo destruído. Um processo de evolução que dessensibiliza, anestesia, deforma e plastifica nossos órgãos e nossas almas, deixando-nos cada vez mais distante do um dia foi um ser humano.
Crítica por: Fabio Yamada.
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