Crítica: Memórias de Um Assassino

"MEMÓRIAS DE UM ASSASSINO" - 2003

🔑🔑🔑🔑🔑



Eu sou fã do cinema coreano há quase duas décadas e tenho que admitir que só fui assistir esse filme de Bong Joon-ho por esses dias. É impressionante observar o crescimento vertiginoso do cinema coreano, tanto em qualidade quanto em importância no cenário mundial. Podemos dividir a história do cinema coreano em duas fases bem distintas, uma antes da ditadura que assolou o país durante os anos 70 e 80, e outra pós-ditadura. Na primeira fase, os filmes produzidos eram sobre os clássicos temas de vingança e melodramas escarrados, mas mesmo assim essa foi considerada a Era de Ouro do cinema coreano. Na segunda fase, após a ditadura com um maciço investimento na cultura e sem as amarras da censura, deu-se início ao Novo Cinema Coreano. Como podemos ver, até poderíamos traçar um paralelo entre as produções cinematográficas da Coréia do Sul e do Brasil. No entanto, o que diferencia é que enquanto o cinema coreano continua sua curva ascendente exponencial, o brasileiro mergulhou em um salto vertiginoso na escuridão.

Eu fui descobrir Bong Joon-ho com seu filme “O Hospedeiro” de 2006 e foi amor à primeira vista, assim como com os filmes de seus compatriotas Park Chan-wook com “Oldboy" de 2003 e a trilogia da vingaça; Kim Ki-duk com “Casa Vazia” de 2004, “Time" de 2006 e “Fôlego" de 2007; Kim Jee-woon  com “I Saw the Devil” de 2010; Na Hong-jin com "O Lamento" de “2016”; Yeon Sang com “Train to Busan” de 2016, Hong Sang-soo com “Certo Agora, Errado Antes” de 2015 e Lee Chang-dong com “Em Chamas”. Citei esses diretores e com alguns de seus primeiros filmes somente para dar idéia do tamanho do cinema desse pequeno país. Produções e diretores premiados e conhecidos em todo o mundo, que não se restringe apenas ao Oscar ou a Palma de Ouro de “O Parasita” de Bong Joon-ho. Representa toda uma geração de diretores, roteiristas, produtores, técnicos e atores que através do investimento na cultura cinematográfica conseguiu disseminar a cultura e o modo de vida de um país para o mundo inteiro, tornando-se uma vitrine viva para quem quiser ver.

Depois de passar por minhas memórias sobre o cinema coreano, retornamos a a história do segundo longa-metragem desse mestre do cinema coreano. Um colega havia me dito que esse era um dos melhores filmes do diretor e na época eu discordara veementemente, mas agora sou obrigado a admitir que sim, esse é um dos melhores filmes de Bong Joon-ho. 

Na história que se passa em uma pequena cidade interiorana da Coréia na década de 80 e que é baseada em acontecimentos reais, uma série de assassinatos de jovens mulheres choca a população local. Os detetives Park Doo-Man (Song Kang-ho sempre magnífico) e Cho Yong-koo (Kim Rho-ha) ficam responsáveis pelos casos, no entanto, a polícia local é completamente despreparada para este tipo de casos, o que rende alívios cômicos constrangedores durante o filme.

Conforme os corpos de belas mulheres vão sendo encontrados amarrados, com sinais de violência sexual e tortura, a pressão sobre o departamento de polícia aumenta. Os dois policiais sem o treinamento necessário se utilizam dos meios que tem à mão para conseguir um suspeito, dando ouvido a fofocas locais, perseguindo possíveis deficientes mentais, forjando provas que se encaixem em suas narrativas e obtendo confissões através de tortura. Nada disso é muito novo para o público brasileiro acostumado as execuções milicianas que assistimos na TV. 

A chegada de Seo Tae-yoon (Sang-kyung Kim) atrapalha as malfadadas manobras dos policiais locais de incriminarem Baek Gwang-ho (Park No-shik), um morador local portador de deficiência cognitiva e queimadura facial, que foi torturado e espancado com a finalidade de se extrair um confissão.

Independente dos métodos utilizados para resolução dos assassinatos locais, Park e Cho realmente acreditam estar realizando um bem para sociedade, afinal eles realmente acreditam na culpa dos azarados suspeitos que caem em suas mãos, apesar de não terem nenhuma prova disso. O detetive da capital, no entanto, analisa as cenas do crime e elabora hipóteses baseadas nas evidências obtidas, como a de que o criminoso ataca somente em dias chuvosos e suas vítimas sempre estão vestindo roupas vermelhas. Um outro dado inusitado é que em todas as noites em que ocorreram os assassinatos uma música específica tocou na rádio local à pedido de um mesmo ouvinte. Todas essas evidências levam a prisão de Jo Byeong-soon (Ryu tae-ho) que consegue habilmente se livrar das acusações.

A fotografia e trilha-sonora do filme consegue imergir o público totalmente na trama e as mais de duas horas de filme nem se veem passar. O filme que pode ser chamado de um thriller policial e de ação mas na verdade é uma grande mistura de gêneros como todos os filmes subsequentes do diretor. Existem algumas pequenas cenas de luta e de perseguições mas isso não é realmente o cerne do filme. O drama psicológicos e as questões sociais estão sempre na atmosfera do filme mesmo que pareçam estar ali apenas como pano de fundo. 

As manifestações políticas absorvendo parte do corpo policial deixando a equipe da cidade desfalcada. O comportamento abrutalhado e violento dos detetives principais que lembram as cenas de tortura dos porões da ditadura. A falta de planejamento e recursos para segurança pública da cidade. A falta de saneamento básico, o trabalho braçal dos mineradores e infra-estrutura defasada com ruas sem asfalto sujeitas a áreas de enchente. Os constantes blecautes para exercícios de guerra contra ataques aéreos dos norte-coreanos ou outros invasores. Tudo isso faz parte de pequenas inserções sobre a vida da população coreana nas pequenas cidades. 

No entanto, o que mais me surpreendeu no filme, foi a coragem do diretor em não se render e não oferecer ao expectador a redenção final que todo filme hollywoodiano dá para o público. 

A metáfora criada ao deixar o suposto assassino desaparecer na escuridão de um túnel sem nem ao menos confirmar a real autoria dos assassinatos é fantástica. Fora o epílogo que bate na cara de todos nós dizendo que o assassino é apenas um homem comum podendo ser qualquer um de nós. Passando a mensagem de que todos nós somos capazes de atos atrozes e descabíveis, sejam eles justificados pela ignorância, inércia, raiva incontrolável ou pura diversão.

Crítica por: Fabio Yamada.

Comentários