Crítica: Compartimento N.6

"COMPARTIMENTO N. 6" - 2021

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O diretor finlandês Juho Kuosmanen que realizou o fabuloso “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki” em 2017, retorna com outro belo e intrigante filme. Uma história de amor entre um homem e uma mulher dentro de um trem, numa viagem de Moscou até Murmansk (quase no oceano Ártico). 

Escrevendo desse jeito, parece até mais um filminho romântico em que duas almas gêmeas se encontram em meio a paisagens gélidas e brancas, e vivem felizes para sempre ou que um dos dois morre no final. No entanto, não se trata nada disso, os personagens em questão são Laura (Seidi Haarla), uma estudante finlandesa que viajou para a Rússia para aprender a língua e acabou se apaixonando por uma mulher mais velha, a professora de literatura Irina (Dinara Drukarova) e o russo Ljoha (Yuriy Borisov), um bruto operário ignorante movido a bebida destilada. 

Esses dois personagens viajam neste compartimento ou cabine aparentemente para o mesmo destino, mas com finalidades completamente diferentes. Laura viaja desacompanhada em busca de pinturas rupestre escritas nos confins do continente, frustrada por sua companheira ter cancelado a viagem no último momento. Ljoha vai em busca de trabalho em uma grande mineradora na cidade local e não faz idéia do que sejam os excêntricos petroglifos que Laura está em busca.

Não sabemos ao certo em que época se passa o filme, mas algumas dicas do diretor sugerem algo entre as décadas de 80 e 90, justamente pela filmadora e as fitas cassetes que Laura escuta e o discurso  soviético que Ljoha defende, justamente antes do desmantelamento da União Soviética. O cenário dos vagões do trem também sugerem uma realidade de muitos anos atrás, com uma cabine de primeira ou segunda classe muito aquém daquelas que estamos acostumados a ver no cinema.

Estabelecer uma realidade temporal é de extrema importância para o filme, pois não existem nem celulares e nem internet. Isso dificulta a comunicação entre Laura e Irina, possibilita defasagem de informação turística e paradoxalmente ajuda na interação entre duas pessoas confinadas dentro de uma cabine, já que nenhuma delas tem a possibilidade de se isolar num mundo virtual.

Laura e Ljoha são praticamente obrigados a conviver e conversar dentro daquela cabine, mesmo que contra a vontade. Inicialmente, Laura sente um profundo desprezo por aquele homem rude e alcoolizado que acredita que ela veio se prostituir em seu país e Ljoha tenta de todas as formas seduzir a jovem garota, que aparentemente não tem interesse sexual pelo sexo oposto.

Conforme o trem se afasta de Moscou e a temperatura vai ficando mais fria, Laura começa a perceber que sua relação com Irina não era bem aquilo que ela imaginava e a necessidade de interagir com outro ser humano acaba sendo mais forte. Laura começa a perceber melhor aquele homem que se encontra na sua frente como um ser humano muito mais próximo dela do que os intelectuais que rodeavam a sua vida. 

O afastamento em relação a dita civilização ou sociedade acaba nos libertando das amarras convencionais e sociais, deixando-nos mais livres para sermos nós mesmos. Podemos conviver com outros seres humanos sem as tradicionais máscaras. As emoções, os desejos e os sentimentos tornam-se mais simples, pelo menos o entendimento que temos deles, pois afinal eles sempre estiveram lá, mas as vezes tão camuflados e escondidos que quase não podemos enxergá-los ou senti-los, quanto mais expressá-los. 

É sobre isso o belo filme do diretor finlandês, de que as vezes precisamos ir até os confins do mundo para sermos nós mesmos e enxergamos o outro como um igual. De que quando finalmente, quando nos re-transformamos em seres humanos conseguimos perceber a emoção do outro e, sem as tradicionais amarras, somos capazes de embarcar na viagem em busca do desejo do outro, sem um interesse próprio, apenas pela aventura de estar ao lado. Somente voltaremos a ser seres humanos quando tivermos a capacidade de apreciar a felicidade e satisfação do outro. Se isso não é uma história de amor puro e verdadeiro, eu não sei o que é.

Crítica por: Fabio Yamada.

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