"A AMIGA GENIAL" - “2018 - ...”
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Um trabalho primoroso da HBO italiana baseado numa série de livros da fabulosa Elena Ferrante que inicialmente nos transporta para a Nápoles dos anos 50 para depois acompanhar uma amizade entre duas mulheres que perdura durante décadas.
Acredito que para a maioria dos homens o universo feminino permanece sendo um enorme buraco negro, mais pela falta de interesse dos mesmos do que pela falta de acesso. No entanto, nenhuma escritora consegue transmitir de forma tão visceral e com tamanha honestidade a complexidade desse ser vivo, que apesar de serem exatamente iguais a nós homens, acabam sendo rechaçadas e aprisionadas a tal ponto que se diferenciam tanto de nós, seus algozes, como forma de escape e sobrevivência.
Na história acompanhamos as histórias de Elena Greco e Lila Cerullo, ambas ainda crianças moram em um vilarejo na periferia de Nápoles. Lenú (Elisa del Genio) é filha de um porteiro e Lila (Ludovica Nasti) é filha de uma sapateiro, ambas estudam na mesma escola primária e são geniais, cada uma a sua maneira.
A amizade entre as duas surge a partir de uma competição entre as duas para ser a melhor da turma. Enquanto, a espevitada e valente Lila desafia a todos a sua volta com seus olhos e cabelos negros, a introspectiva e tímida Lena esconde seus olhos azuis dos olhares alheios. Numa Itália do pós-guerra, ainda mais na região sul, o estudo não era uma virtude muito valorizada e a máfia napolitana encontrava-se em seus primórdios. A vida para uma garota não tinha muitas perspectivas além de um bom casamento e cuidar dos filhos e maridos.
Após desafiarem os garotos em uma gincana interna dentro da escola, as duas garotas se unem em uma empreitada para fugirem do vilarejo e do destino que as aguarda. Um incidente marca a infância das duas garotas, a perda da boneca de Lenú no porão da casa do chefe da máfia local. Don Achille (Antonio Pennarella), ao invés de devolver a boneca das garotas, dá uma quantia em dinheiro para elas, que acabam comprando um livro “Adoráveis Mulheres” ou “Mulherzinhas” publicado em 1868 de autoria de Louisa May Alcott. As duas garotas devoram o livro e o guardam como se fosse um tesouro, ambas elaboram um plano de também escreverem um livro afim de ficarem ricas e fugirem do vilarejo.
A amizade entre as duas associada a um misto de competição estimula uma a outra a crescerem intelectualmente, fazendo com que cada uma delas se destaque em meio a miséria social do vilarejo. No entanto, o caminho das duas se separam a partir do momento que o pai de Lila a impede de continuar os estudos e o de Lenú permite que ela continue na escola.
Apesar dos obstáculos iniciais, cada uma a sua maneira tenta conseguir seu objetivo, Lila encara de frente a opressão masculina de seu pai e acaba sofrendo as primeiras violências físicas de sua vida, enquanto Lenú tenta barganhar e manipular seus oponentes, atingindo seus objetivos à duras penas.
As duas garotas crescem, tornam-se adolescentes e enquanto Lenú se esconde atrás dos livros, Lila torna-se alvos dos olhares masculinos. A rivalidade entre as duas se acirra a partir do noivado de Lila com o filho do falecido Don Achille, Stefano (Giovanni Amura). Lila deseja a todo custo sua liberdade para poder atingir seu potencial intelectual, seja na forma de projetos de sapatos e criação de vitrines. Lenú, que nunca chegou acreditar em seu potencial individual, deseja a todo custo ser desejada sexualmente da mesma forma que a amiga é, não tendo idéia do peso e das consequências que isso causa na vida de Lila.
Essa amizade que alguns poderiam chamar de tóxica é a única coisa que consegue ajudar as duas garotas a sobreviverem em meio a opressão masculina de seus pares, família e amigos. Lila e Lenú tropeçam e ultrapassam os obstáculos do calvário feminino de formas diametralmente opostas. Cada pequena vitória na vida de uma delas se sobrepõe uma imensa derrota na vida da outra. O prêmio que uma ganha estimula a inveja e escárnio da outra. O sofrimento e lágrimas de uma compele a compaixão e solidariedade. Eu jamais chamaria isso de toxicidade, mas sim de cumplicidade e intimidade, são esses elementos que constroem as verdadeiras amizades que atravessam o tempo e a distância.
O diretor consegue deixar de lado seu olhar masculino e preconceituoso, talvez por causa do livros no qual a produção se baseia, mas não podemos renegar o brilhantismo das duas atrizes estreantes, Gaia e Margherita que emprestam suas belezas e almas para criarem esses inesquecíveis personagens. Alguns pequenas informações técnicas chamam a atenção com a direção de alguns episódios pela magnífica Alice Rohrwacher de “Lazzaro Felice” e “Le Meraviglie” e a produção de Paolo Sorrentino de “A Grande Beleza” e “A Mão de Deus”.
Uma fantástica série que alguns poderiam apelidar de um spin-off de “Thelma & Louise” desde de a tenra infância, com cenários de uma atemporal e bela Itália captada pela estupenda fotografia de Fabio Cianchetti e Francesca Calvelli capitaneados por Savério Costanzo, mas que deixa de lado os maneirismo e lugares comuns do cinema hollywoodiano e sem descambar, ao mesmo tempo, para o melodrama folhetinesco das novelas latinas. Um filme emocionante construído a partir da escrita impiedosa e demolidora de Elena Ferrante.
Crítica por: Fabio Yamada.
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