"FLEE" - 2021
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Um filme maravilhoso que se utiliza da animação como artifício para demonstrar situação e emoções que um documentário comum, live action, não seria capaz de mostrar. Isso não chega a ser uma novidade no cinema, outros filmes como “Chris, o Suiço” de 2018 já realizava esse mistura entre cenas live action e animação. No entanto, aqui o diretor se utiliza desse artifícios de forma lírica e poética como subterfúgio para esconder a identidade do interlocutor sem que o público perca a chance de se identificar com história.
O filme se inicia com um relato do protagonista entrevistado da história sobre o que é um “Lar" para ele, que é definido como um lugar onde ele pode permanecer seguro, de onde ele não precisa ir além, de onde ele não precisa fugir.
A produção dinamarquesa consegue dar conta da dimensão do que significa estar em estado de fuga em todos os sentidos, seja ele físico, mental ou emocional, para tanto se utiliza de recursos estilísticos da animação, da trilha sonora, da narração e do próprio roteiro. O documentário de Jonas Poher Rasmussen consegue nos transportar para baixo da pele do enrustido protagonista e suas memórias de fuga.
Durante a história acompanhamos o diretor com seu avatar animado entrevistando o protagonista, o refugiado Amin já adulto, que agora mora em Copenhague com seu namorado Kasper. A animação inicialmente tenta reconstruir um ambiente de entrevista com o interlocutor e seu entrevistado de frente um para o outro com uma câmera interposta. Assim que a entrevista começa, a animação reconstrói a entrevista como se fosse uma sessão de terapia com Amin deitado em um divã, como se os relatos de sua memória servissem com uma espécie de cura para suas dores no presente.
Os relatos de Amin nos transportam para Cabul, capital do Afeganistão, durante a década de 70 e 80, durante a invasão do exército soviético. Imagens documentais locais de pontos turístico mesclados com imagens da guerra criam uma espécie de ambientação local. As palavras de Amin se transformam numa animação da vida de um garoto um pouco diferente dos outros que dança pelas ruas da cidade, vestido com a camisola da irmão ao som de “Take on Me” do grupo A-ha em seu walkman cor-de-rosa. Deixando de lado algumas escolhas clichês do diretor, o filme reserva algumas surpresas estarrecedores, como o fato de não existir uma palavra para homossexualidade na língua dari, assim não existe como ninguém se identificar com algo que não existe.
A grande maior parte do público já imagina a série de sofrimentos e peregrinações dos refugiados afegãos durante as inúmeras invasões a seu país natal. No entanto, mesclar isso com uma animação com relatos reais e aos olhos de uma criança que após perder o pai tem que tentar fugir de seu país abandonando tudo para trás é muito comovente.
O diretor opta por misturar diferente tipos de traços durante a animação, alguns simulando uma espécie de rotoscopia sobre cenas que sabemos não existirem filmagens reais. Outros traços revelando apenas contornos que ressaltam as sombras das ameaças ao redor da família. Outros que emulam sentimentos e fantasias do protagonista ainda criança.
As narrativas do passado e do presente se transformam em animação, sendo que as memórias por vezes assumem um traçado 2D e a do presente 3D, como se algo fosse se perdendo durante essas transcrições entre memórias e vivências. A própria releitura de narrativas com a revelação sobre o verdadeiro passado de Amin se dá através da leitura de um falso diário no meu do filme. Um diário escrito à mão em dari pelo próprio Amin que agora não reconhece a própria letra ou suas próprias memórias.
A maravilhosa metáfora que o diretor cria entre o estado de refugiado que esconde seu passado para manter o seu exílio e a homossexualidade enrustida é de uma sensibilidade ímpar. Afinal, ambos estão sempre fugindo de algo, sem poder criar raízes em lugar nenhum e laços com ninguém, em constante estado de vigília e fuga, sempre em movimento, nunca encontrando um lar, nem mesmo sob a própria pele.
O filme reserva alguns momentos de redenção com puro lirismo como o passeio de Amin com o tio pelas ruas de Estocolmo ou a cena final com direito a imagem de um jardim que finalmente assume a filmagem live action, como se a animação fosse utilizada como fuga para a realidade, que tarda mas que finalmente se revela ao final. Amin finalmente parou de fugir, de mentir e se camuflar. Ele finalmente encontrou um lar, seja na imagem estática de um belo jardim ou no abraço de seu amor. Nunca uma animação me afetou de tal forma, um sentimento arrebatador de identificação com um refugiado de seu próprio eu.
Crítica por: Fabio Yamada.
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