"A FILHA PERDIDA" - 2021
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Uma estréia avassaladora da atriz Maggie Gyllenhaal como diretora de cinema, que através da adaptação do livro “La Figlia Oscura” ou “Storia della Bambina Perduta” de 2014 da fantástica escritora italiana Elena Ferrante, que aborda o complexo tema da maternidade de forma extremamente honesta e indigesta.
O filme é feito praticamente por mulheres, com elenco com protagonistas femininas, mas não se enganem, ele não foi feito apenas para o público feminino. Entendo que o peso da maternidade recaia praticamente quase que totalmente sobre o universo feminino, sem comparação quase que nenhuma com a cobrança da sociedade sobre o que se espera de uma mãe e de um pai. No entanto, sempre seremos o filho de alguma mãe, o irmão de alguma mãe ou o companheiro de alguma mãe.
Fica muito fácil para nós homens, que nunca estaremos nessa posição, cobrarmos ações, reações e sentimentos dessas mulheres que de alguma forma ousaram, tiveram, desejaram ou lutaram para ter filhos. Torna-se muito interessante observar com o olhar masculino uma escritora e uma diretora abordarem com uma honestidade visceral esse tema tão caro e precioso para humanidade. O filme me deixou de tal forma perturbado que fico imaginando uma mulher ansiosa pela maternidade assistindo o filme, pode parecer ingênuo da minha parte não imaginar que todas as mulheres tenham essas dúvidas e esses medos, mas nunca esperamos que elas transformem esses sentimentos em ações, que para alguns podem parecer desconexas, mas que provavelmente florescem no âmago interior de cada mãe ou de mulher que pensa em ter filhos.
No roteiro adaptado, a diretora realiza algumas pequenas mudanças como a troca de nacionalidade da protagonista que ao invés de uma italiana agora é americana e a locação principal torna-se uma melancólica praia de uma ilha grega, abandonando o pitoresco cenário de Nápoles e Ischia.
No filme acompanhamos a solitária chegada de Leda (a maravilhosa Olívia Colman) em seu apartamento alugado no balneário. Ela acaba sendo recebida pelo sisudo e também solitário proprietário Lyle (Ed Harris num papel menor). Através de curtos diálogos, imagens de muitos livros e ousados enquadramentos que se focam na monótona rotina de “autista" da protagonista, descobrimos que ela é uma professora universitária de literatura que está de férias longe de sua família.
O clima de suspense e mistério com estranhas trocas de olhares e um comportamento vouyer de Leda suscitam ilusória idéia de tratar-se de um thriller, deixando o expectador em constante estado de vigília, como se alguma fatalidade pudesse acontecer a qualquer instante.
Alguns pequenos sinais ou símbolos, como as frutas apodrecidas em cima da mesa, a mariposa em cima do travesseiro, a pinha que machuca a protagonista e as insistente dores estomacais preparam a imaginação do publico para algo muito mais indigesto, a honestidade incisiva e desconexa de uma mulher que deseja mascarar a todo custo uma dor que insiste em aflorar.
A diretora tenta a todo custo não mascarar ou florear as cenas, evitando manipular os pensamentos ou sentimentos do público, buscado isolar os acontecimentos através dos olhares e close-ups da protagonista. Isso deixa tudo mais cru, sincero e visceral dentro do filme. Algo que seria impossível sem o elenco fantástico que a diretora escolheu.
Durante as solitárias, mas nem tão silenciosas, visitas a praia local, Leda se depara com uma ruidosa família local e seus agregados. Leda começa a observar mais atentamente a bela Nina (Dakota Johnson comovente) e sua filha Elena (Athena Martin Anderson), um espevitada e irritante garotinha. Em um determinado dia, após um embate trivial entre Leda e a matriaca grávida da família Callie (Dagmara Dominczyk), Elena desaparece na praia e acaba sendo encontrada por Leda, que se torna uma espécie de heroína.
A montagem criada pela diretora pode confundir um pouco o desatento expectador, que mergulha sem aviso num turbilhão de memórias da protagonista relacionada a sua vida quando jovem interpretada pela fantástica Jessie Buckley e a difícil mas amorosa convivência dela com suas filhas ainda pequenas, Bianca e Martha. Tudo isso, misturados com as cenas de Nina tentando lidar com a filha pequena, um ausente e apaixonado marido, uma cunhada castradora e um misterioso amante. Nina funciona como uma espécie de gatilho para as incômodas lembranças traumáticas de Leda, que parecem sempre ter algo a esconder do público e dela mesma. A atmosfera sufocante e as contraditórias ações das duas mães são os pontos de intersecção dessas duas mulheres que tiveram filhos.
Jamais pensem que com este jogo de palavras, eu esteja julgando o comportamento de nenhuma das duas, trata-se apenas de uma forma de tentar descolar a imaculada e sagrada imagem que temos da maternidade do simples fato da procriação e manutenção da espécie.
Jessie e Olívia são aparentemente dois contra-pontos ou facetas da mesma personagem, ficando um pouco difícil inicialmente imaginar como uma se transformou na outra. No entanto, a habilidade da escritora e da diretora conseguem nos guiar por esses caminhos sinuosos de transformação auxiliadas pelos olhares e pequenos gestos das duas grandes atrizes.
O elenco masculino apesar da imensa qualidade e beleza, eles servem apenas como acessórios para ilustrar as perdas as quais uma “boa mãe” tem que se submeter, por vezes abrindo mão de seus desejos, ambições, profissões e amores. Os destaques entre os personagens masculinos são o jovem marido de Leda, Joe (Jack Farthing), o professor amante de Leda, Hardy (Peter Sarsgaard), o marido ciumento de Nina, Toni (o belo Oliver Jackson-Cohen) e seu amante sensual, Will (Paul Mescal).
Todo o filme culmina numa estranha conexão entre duas bonecas na vida de Leda e o inusitado sequestro da boneca de Elena. Um simples ato de Leda, aparentemente incompreensível para o público no início do filme, mas que torna-se aterrador no desenrolar da história.
Impossível não se comover com as histórias dessas incríveis mulheres, que tanto a escritora Elena e quanto a diretora Maggie conseguiram expressar através de palavras e imagens de extrema coragem e honestidade. Fiquei tão impressionado com a força da obra dessa escritora que comecei a assistir várias outras obras adaptadas para o cinema e estou impactado com série produzida pela HBO “A Amiga Genial” baseada no livro “L'Amica Genialle” de 2011.
Crítica por: Fabio Yamada.
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