"DRIVE MY CAR" - 2021
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Um dos filmes mais premiados do ano, dirigido pelo jovem diretor Ryûsuke Hamaguchi e baseado em um conto do laureado escritor japonês Haruki Murakami. O filme tem duração de quase 3 horas e possui um prólogo de 30 minutos, somente após esse preâmbulo, título e letreiros nos são apresentados.
Nesse prólogo, somos apresentados ao casal Yûsuke (Hidetoshi Nishijima fabuloso) e Oto (Reika Kirishima), ele é um ator de teatro e ela uma dramaturga/ roteirista. Eles perderam recentemente a filha e tentam cada um a seu jeito superar o luto. Ela tem o estranho hábito de criar histórias enquanto tem relações sexuais e ele de repassar suas falas enquanto dirige seu carro, um modelo antigo da marca sueca Saab vermelho.
Em um determinado dia, uma viagem a trabalho de Yûsuke é cancelada e ele volta mais cedo para casa e é surpreendido com a cena da esposa transando com outro homem. Yûsuke não intervém e mantém o silêncio em relação ao incidente. Ele acaba sofrendo um acidente de carro e descobre que tem glaucoma, patologia que pode afetar sua visão e impedi-lo de dirigir seu carro no futuro. Oto tenta conversar com o marido, que aparentemente foge de uma discussão mais direta. No entanto, as intenções da esposa são interrompidas por uma hemorragia cerebral que tira sua vida precocemente.
Dois anos após essa epopéia de perdas do nosso protagonista, ele é convidado a dirigir uma montagem da peça “ O Tio Vânia” de Anton Tchekov na cidade de Hiroshima. Chegando ao teatro, Yûsuke descobre que não poderá guiar seu carro na cidade, devido incidentes anteriores com outros artistas. Ele, então, deve aceitar ter seu carro guiado por um motorista.
O permitir que outro ser humano dirija seu carro, inclui o fato de ter seu solitário hábito de passar suas falas com o auxílio de uma fita cassete que dita as falas do interlocutor invadido por um estranho e indesejado ouvinte. Nesse momento entra em cena Misaki (Tôko Miura) a lacônica motorista, que silenciosamente invade o universo do protagonista.
Concomitantemente a essa invasão insidiosa, somos apresentados ao processo de escolha do elenco e ensaios da peça do dramaturgo russo que versa sobre as frustrações e perdas de um homem que ao envelhecer se recusa a entender que cada está no lugar em que se põe, preferindo culpar os outros a sua volta por sua infelicidade.
Enquanto que no carro, somos apresentados a um ritual onde pequenos gestos e falas desnudam motorista e passageiro aos olhos um do outros, no teatro, o elenco com diferentes etnias e vozes distintas, que também inclui uma atriz muda que utiliza das libras, eles se comunicam e encenam seus personagens através da linguagem corporal e pequenos gestos.
Yûsuke confessa em uma cena que não interpreta mais o personagem do tio Vânia, justamente por que as palavras de Tchekov revelam seu interior, mas continua incessantemente recitando suas falas dentro do carro. Um dos atores da peça diz que por mais que amemos uma pessoal, jamais saberemos o que se passa realmente em sua mente e que para tentarmos entender a dor do outro deveríamos primeiro olhar para dentro de nossa própria escuridão.
O filme do diretor japonês cresce progressivamente conforme acompanhamos a trajetória do protagonista, de um cinema com escolhas óbvias e clichês para algo mais ousado e desafiador que entrega tudo para o espectador. Se a aproximação entre os dois personagens em luto se dá em pequenos detalhes, algumas ações acontecem fora do plano, como se o protagonista precisasse se camuflar ou interpretar outro personagem para revelar suas dores mais intrínsecas. Assim como no palco algumas falas devem ser repetidas até a exaustão para finalmente poderem perder seu poder verbal e ganharem o auxílio corporal e mental, o protagonista e sua motorista precisam repetir ritualmente sua rotina para perceberem que estão em um lugar em comum, que vai muito além do que aquele carro.
Se na cultura oriental se revelar para o outro acaba se tornando uma tarefa hercúlea, no filme não basta estarem caminhando pela mesma estrada para saberem que vão chegar ao mesmo destino. As vezes precisamos enxergar nossa dor no outro para nos abrirmos em um abraço solidário. Por vezes, essa entrega advém de palavras verbalizadas, outras de pequenos gestos e olhares, porém, no cinema de Hamaguchi isso pode surgir de um silêncio compartilhado.
Crítica por: Fabio Yamada.
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