"KATLA" - 2021
🔑🔑🔑🔑🔑
Uma esplêndida produção nórdica com um roteiro que mistura folclore com ficção científica e eventos geológicos reais, embasados por um sólido enredo dramático, algo de dar inveja a qualquer produção hollywoodiana.
Na trama que acompanha a erupção de um dos maiores vulcões da Islândia, o Katla, relembrando os eventos da recente erupção do Eyjafjallajökull, que fechou o espaço aéreo de toda Europa, transformando a paisagem da pequena cidade da Islândia em terreno inóspito a qualquer tipo de vida. Os moradores que persistem em viver na cidade são surpreendidos pela aparição de entes há muito tempo desaparecidos.
Inicialmente, temos a impressão de estarmos diante de uma versão nórdica de “Les Renevants”, onde personagens mortos retornam da morte através emersão de seus corpos nas águas plácidas do lago local. No entanto, os corpos recobertos pelas cinzas vulcânicas do Katla não necessariamente são de personagens mortos.
A primeira aparição enegrecida é a de uma jovem grávida, Gunhild (Aliette Opheim), uma garota sueca que há décadas trabalhava no hotel local e engravidou devido a um relação extra-conjugal de Pór (Ingvar Sigurdsson), que na época era casado com Stefania (Guõbjörg Thoroddsen) e tinha duas filhas Grima (Guõrún Yr Eyfjörõ) e Ása (Íris Tanja Flygenring). A garota fugiu da cidade após a esposa de Pór se suicidar e teve seu filho Björn (Valter Skarsgard), um garoto deficiente físico devido as tentativas de aborto da mãe. A Gunhild dos tempos atuais é comunicada do aparecimento dessa impostora querendo assumir sua vida e viaja para Katla.
A segunda aparição é a de Ása, que desapareceu misteriosamente no dia da erupção do Katla há um ano atrás, relegando para a irmã Grima o sentimento de culpa e a missão de encontra-la a qualquer custo. Grima durante todo este período abriu mão de sua vida com o marido Kjartan (Baltasar Breki Samper) para se dedicar exclusivamente a busca de sua irmã.
O delegado da cidade, Gisli (Porsteinn Bachmann) que dedica sua vida para cuidar da esposa Magnea (Sólveig Arnarsdóttir), com sequelas neurológicas devido a um câncer disseminado, é surpreendido pela aparição de Magnea em um corpo sadio. Ele começa a acreditar que trata-se de uma benção divina e não sabe ao certo como lidar com a existência das duas esposas e decide que uma deve ser eliminada.
Darri (Björn Thors), o geólogo responsável pelo estudo das erupções do Katla é surpreendido pelo retorno de seu filho Mikael (Hlynur Hardarson), que faleceu em um traumático acidente de carro. Darr e sua esposa Rakel (Birgitta Birgisdóttir) não conseguiram superar a perda do filho e estão em um difícil e raivoso processo de divórcio. No entanto, o que surpreende o espectador é a visão que os pais tem, ou não, do próprio filho.
A última e mais surpreendente aparição é da própria Grima, que se encontra com seu duplo, uma versão dela mesma, muito mais amorosa e otimista, que consegue agradar a todos a sua volta. Uma versão de vida da qual ela poderia ter experimentado se não tivesse permanecido amargurada com as perdas de sua mãe e irmã.
O misterioso e encantador enredo dessa produção nórdica relembra alguns clássicos cinema existencialista de Tarkovsky, como “Solaris" ou “Stalker”, onde a natureza ou o extra-terrestre tem o poder de materializar pensamentos, sentimentos ou desejos humanos. Na série, essas personificações são chamadas de changelings que tem a missão de determinar o fim de um ciclo de emoções ou sentimentos mal resolvidos, como se o peso daquela dor ou emoção fosse capaz de gerar uma energia ou matéria, o tal fantasma ou espírito que existem em muitas culturas.
Se tudo sempre está em transformação, se precisamos descarregar nossas emoções para seguir em frente, nada melhor do que a metáfora da erupção de um vulcão para exemplificar isso. Um evento cataclísmico com efeito de destruição de massa capaz de criar vida.
Se a nossas emoções e dores nos permitem somatizar doenças, por que a nossa percepção da realidade não seria capaz de materializa-las em pessoas ou fantasmas. Uma bela releitura sobre o que significa entropia e do que a natureza e a nossa mente são capazes de realizar para curar nossas feridas e arrependimentos. Se alguns são capazes de criar o céu e o inferno, por que não podemos apenas acreditar que um dia nossas dores podem finalmente ter um fim, ou pelo menos se transformarem em algo mais tolerável.
Sim, os arrependimentos nos perseguem durante toda a vida e por vezes precisamos por tudo a baixo para recomeçar do zero. Não precisamos de um vulcão ou de uma pandemia mortal para enxergarmos isso, podemos apenas repensar nossas escolhas e direcionar nossas energias para construir um futuro melhor. Afinal, basta um espelho para percebermos que somos todos iguais com nossas pequenas diferenças, apenas diferentes versões de nós mesmos que tiveram as mesmas origens e terão o mesmo fim.
Crítica por: Fabio Yamada.
Comentários
Postar um comentário