Crítica: Carro Rei

"CARRO REI" - 2021

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Um filme extremamente inventivo, uma verdadeira metralhadora de provocações, uma junção de gêneros inclassificável, irregular e bela como o cinema deve ser. Impossível ficar indiferente ou incólume ao filme de Renata Pinheiro vencedor do Festival de Gramado desse ano. A diretora que já havia feito muito barulho com “Amor, Plástico e Barulho” e “Açúcar”, aqui consegue chutar o pau da barraca com esse “Transformers” tupiniquim que tem como cenário a cidade de Caruaru, no meio do Sertão Nordestino.

Antes de falar do filme em si, sinto-me na obrigação de reconhecer a transformação pela qual o Festival de Gramado tem passado, se num passado recente o festival era tido como conservador em suas premiações, os vencedores dos últimos anos conseguem elevar ou pelo menos modificar essa visão, tendo em vista que foram filmes diferenciados e até certo ponto revolucionários em sua linguagem ou temática, filmes extremamente antenados com o que acontece em território nacional e com o que está sendo produzido no cinema mundial.

Agora, falando sobre o filme em si, que começa com o nascimento de Ninho dentro de um carro da frota de táxi de Pato (Okado do Canal) e sua esposa Mercedes (Jules Elting). Ninho cresce e vira um garoto que possui uma estranha ligação com esse carro, um Fiat Uno, chegando a conversar com o carro. Se na parte inicial do filme temos uma proximidade com o gênero da comédia, fazendo alusão ao Herbie de “Se meu Fusca Falasse”, na segunda parte após o acidente no qual Ninho perde a mãe e acaba se afastando de seu amigo motorizado. o filme vai ganhando contornos mais sinuosos e sinistros.

Numa única cena sem diálogos, com personagem de Ninho já adolescente, interpretado por Luciano Pedro Jr., em sua bicicleta andando pela rua, deduzimos que após a morte da mãe ele renegou o universo do pai, que a princípio se tornará um tipo de antagonista da história. Nessa fase, Ninho acaba sendo expulso de casa pela escolha da carreira profissional que fez, indo morar no abrigo comunitário da faculdade agrícola, onde conhece Amora (Clara Pinheiro).

O personagem mais marcante do filme, o Zé Macaco (Matheus Nachtergaele, fantástico), irmão de Mercedes acaba sendo expulso da oficina de Pato logo após o acidente de Mercedes, indo para no ferro-velho assim como a carcaça metálica do carro do acidente. O trabalho físico e vocal do ator são essenciais para a construção desse personagem fascinante que sofre as maiores transformações durante todo o filme, passando do deficiente mental injustiçado para um cruel e impiedoso empresário assim que adquire a tecnologia e meios para fabricação de um novo produto de consumo.

Se o desenho do enredo a primeira-vista parece clichê, o homem humilde que constrói uma máquina da qual perde o controle e ao se arrepender tem que lutar pela sua destruição, a forma e a linguagem que a diretora se utiliza para expressar na tela suas idéias acaba sendo extremamente inovadora. Alguns críticos dirão que existe um excesso de linguagem e um exagero estético, que eu adoro na verdade. 

A partir de uma lei criada pelo deputado Audileyson (Tavinho Teixeira) que estabelece que todos os automóveis com mais de quinze anos de uso devem ser retirados de circulação, assim a frota de táxis de Pato acaba sendo ameaçada, assim como a caminhonete da comunidade agrícola. Ninho com a ajuda de Zé Macaco decide transformar o antigo Uno no Kings Car e assim surge uma nova marca de carros que transforma carros velhos em um automóvel interativo e de roupagem nova. A interação com o motorista e passageiros surge a partir do dom de Ninho em se comunicar com esses automóveis e da criação de um aparelho que traduz os pensamentos dos velhos automóveis por seu tio enlouquecido.

Dessa distopia fantástica surgem cenas inesquecíveis como um número musical com os funcionários da Kings Car vestidos com uniformes verde-amarelos, que após ingerirem um solvente automotivo começam uma dança robótica ao som de um “Hino Nacional” em ritmo eletrônico. Além de verdadeiras interações sexuais entre a personagem transgressora que ensina poledance para Zé Macaco e o Carro Rei original, cenas e idéias polêmicas que ao mesmo tempo lembram o subversivo filme “Crash" de David Cronenberg e o recente “Titane" de Julia Ducournau premiado com Palma de Ouro em Cannes. 

Tudo isso sem falar da eclética trilha sonora criada pela DJ Dolores que mistura músicas como “Automatic Lover” de Dee D. Jackson com “Caruaru” de Dalva de Oliveira, criando uma aura musical para o filme.

Crítica por: Fabio Yamada.

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