"DORA E GABRIEL" - 2020
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Um filme fantástico sobre duas pessoas encarceradas dentro do porta malas de um carro, mas que na verdade representa um Brasil inteiro desgovernado, asfixiado, no escuro e sem perspectiva de futuro.
O filme se inicia com um carro parado no semáforo, assaltante chegam rendendo o motorista e colocando-o no porta malas do carro. Uma mulher que caminha pela calçada observa a cena estupefata e sem reação, ela acaba sendo enfiada dentro do porta malas junto com o motorista e os assaltantes partem com o carro.
Já estamos acostumados a assistir filmes americanos sobre personagens encarcerados, seja “Enterrado Vivo” com Ryan Reynalds dentro de um caixão, “Kill Bill” com Uma Thurman em outro caixão ou “The Call” com Abigail Breslin dentro de um porta malas, mas enquanto nesses filmes a intenção do encarceramento é de criar um suspense sufocante, aqui no filme de Ugo Giorgetti, o diretor através desse encontro inusitado dentro de uma situação caótica tenta criar uma metáfora com nossa sociedade atual.
Apesar do filme ter sido concebido e filmado muito antes da epidemia de COVID, a nossa situação atual serve para reforçar fisicamente o enclausuramento no qual nossa sociedade já vinha vivendo, vidas que se sufocam não por paredes mas sim pelo vazio, pela ausência de perspectivas. Uma boca que não não grita, não pela presença de uma mordaça, mas pela simples falta de voz. Um futuro que não se vê, não pela cegueira, mas simplesmente pelos olhos que insistem em ficar fechados. Um objetivo que não se alcança, não pela presença de barreiras, mas pela simples inanição.
Os nossos personagens enclausurados são Gabriel (Ari França), um imigrante libanês que fugiu da guerra civil em seu país para viver aqui e trabalha em um restaurante e Dora (Natália Gonsales), uma provável prostituta que não suporta ser tocada. Esses dois personagens inicialmente se odeiam gratuitamente, apesar de obviamente estarem naquela situação contra a vontade. Dora a todo momento reclama de estar com uma falta de ar, que somente melhora quando o carro está em movimento. Gabriel que a todo momento insiste que eles tem que fazer algo para sair do porta malas mas nada faz de concreto para conseguir sair de lá.
Na escuridão daquele pequeno espaço, que por vezes parece aumentar e diminuir de tamanho, os personagens consegue escutar os ruídos e conversas do lado de fora, tentam se localizar temporoespacialmente através do movimento e velocidade do carro. Através de um pequeno orifício na tampa do porta malas eles tentam observar o que acontece no mundo exterior, mas essa fenda apenas lhe dão um recorte do que pode estar acontecendo. Gritos, brigas, tiros e as músicas escolhidas pelos passageiros do carro indicam indiretamente a troca de condutores do carro sequestrado sem destino conhecido, assim como nossa querida nação que troca de governante ou assaltante de tempos em tempos, que apesar de serem conhecidos e eleitos através do voto se tornam grandes decepções.
No decorrer do filme, Dora e Gabriel acabam permitindo se conhecerem um pouco através mesmo que sem se verem por causa da escuridão, são as pequenas informações que vazam em seus discursos sobre o medo da situação em que se encontram que trazem um pouco da verdade de cada um dos dois. Gabriel percebe que ela pode ser uma das mulheres que mais próxima ficou dele, mesmo que contra a vontade e Dora percebe que ele pode ter sido o homem mais bondoso que a tocou mesmo que sem pagar por isso.
Um filme ousado pela dificuldade de produção, exigindo muita criatividade do diretor de fotografia para reproduzir e passar a sensação desse enclausuramento fechado, mas acima de tudo um filme profético em uma poética e pouco palatável metáfora de nossa situação atual. Muitos dizem que querem sair desse buraco escuro no qual nos encontramos, mas poucos tem a coragem de olhar para fora, talvez pelo medo de encontrarem um outro vazio, mas agora pior ainda, um vazio iluminado que apresente todas as nossas carências, ausências e falhas.
Crítica por: Fabio Yamada.
Ouça o episódio sobre esse filme aqui.
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