Crítica: The Undoing

"THE UNDOING" - 2020

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Um seriado com a falsa idéia de que se trata de um thriller de mistério e suspense sobre um assassinato, mas que na verdade é sobre a nossa capacidade de não querer enxergar as coisas que não queremos acreditar. 

Toda a nossa visão de mundo é embasada na cultura de nosso meio e no conjunto de nossas vivências pessoais. Por mais pessimistas que sejamos, geralmente acreditamos na bondade humana e na eficiência do nosso senso de julgamento em relação aos indivíduos que fazem parte do nosso círculo de convivência, principalmente para com aquele que escolhemos como nosso companheiro de vida.

Justamente por tudo isso, muitas vezes fechamos os olhos para pequenos acontecimentos, pequenas mentiras, incongruências ou desvios de comportamentos, que quando somados revelam uma verdade inconveniente, mas incontestável. Nós fomos enganados, ou melhor nós mesmo nos enganamos, as vezes, por tempo demais.

O ditado que diz que precisamos nos afastar para poder enxergar o todo, também vale aqui. A proximidade não nos impede de enxergar, mas pode deixar tudo meio fora de foco, ou melhor , simplesmente viramos o rosto para o que não nos agrada. É incrível a capacidade da mente humana de acreditar que só por que não estamos vendo, o fato deixa de existir. Por vezes, de tanto negarmos a existência, algumas coisas realmente tornam-se invisíveis, mas nem por isso deixam de existir. Outras por consequência, a partir do momento que são construídas ou demonstradas, tornam-se reais no momento que sensibilizam nossa retina, sejam reais ou não.

Por todos os motivos acima, acredito que a esta série seja brilhante, não se trata de descobrir quem matou quem, mas sim sobre quem conta a melhor história e da melhor forma. Trata-se da nossa capacidade de distorcer a realidade ou nossa concepção de realidade para o que melhor nos convém no momento. Do quanto podemos manipular ou ser manipulados nessa guerra de narrativas. E como, por Deus, conseguimos acreditar em pessoas e histórias, apesar de tudo dizer o contrário; ciências, teorias, comportamentos, ações, antecedentes e fatos. Insistimos em defender mentirosos e ignorar a realidade em prol de uma idéia ou imagem irreal que construimos em nossa mente. 

Na história temos uma família perfeita formada por Grace (Nicole Kidman, sempre bela) e Jonathan (Hugh Grant), ela uma terapeuta de casais e ele um oncologista pediátrico de sucesso. Eles tem um filho, Henry (Noah Jupe, fantástico), um aluno estudioso e que toca violino. Eles moram em um linda casa nos arredores do Central Park. Henry estuda em uma das escolas mais seletas da cidade. 

Grace tenta participar das atividades escolares do filho, promovendo grupos de apoio e  campanhas beneficentes. Elena (Matilda De Angelis, linda) é a mais nova integrante do grupo de mães, cujo filho Miguel (Edan Alexander) acabou de ingressar na escola. Ela é uma artista plástica que tem um recém-nascido que leva para as reuniões. Elena se aproxima de Grace, justamente por ser ignorada pelas outras mães. 

Ao final do primeiro capítulo, descobrimos que após uma festa de confraternização da escola, Elena é assassinada brutalmente em seu estúdio e seu corpo é encontrado por seu filho. A partir dessa premissa, bastante clichê, somos apresentados a inúmeras reviravoltas narrativas.

Inicialmente, tudo leva a crer que o assassino é Jonathan, que além de ter sido médico de Miguel, teve um caso com Elena e é o pai da criança recém-nascida. Ele ainda fugiu da cena do crime, logo após uma noite de amor com a vítima. Quem vai duvidar de que ele seja o assassino?

No entanto, a cada capítulo somos direcionados para uma nova teoria, seja por descobertas dos detetive Mendonza (Edgar Ramirez, lindo) ou por teorias da advogada Haley (Noma Dumezweni, magnífica). Começamos acreditando que tenha sido a própria Grace, que foi captada por câmeras de segurança caminhando na noite do crime próximo ao estúdio de Elena. Depois começamos a acreditar na culpa do marido Fernando (Ismael Cruz Cordova), que passa o seriado todo com a expressão de raiva e culpa. Alguns como eu, podem ter elaborado teorias sobre Sylvia (Lily Rabe), uma advogada amiga de Grace que misteriosamente fazia-se presente em toda trama ou no rancoroso pai de Grace, Franklin (Donald Sutherland), que fazia de tudo para afastar Jonathan de sua filha. Chegamos até a acreditar na culpa de Henry, quando Grace encontra a suposta arma do crime, o martelo de Elena, dentro da caixa de violino.

São tantas as narrativas fantasiosas que podemos criar na nossa cabeça, ou na dos autores, para desfocar a teoria principal. Podemos tentar desconstruir ou desfazer essa narrativa de tantas formas para deixa-la mais agradável ou mais suportável. Quantas vezes inventamos milhares de desculpas ou justificativas mirabolantes para evitar uma realidade desagradável ou inaceitável?

No livro que deu origem a série, que se chama “You Should Have Known”, o personagem de Jonathan nem se quer aparece, ou melhor, Grace tem que lidar o desaparecimento do marido e a partir daí ir desconstruindo a imagem que tem dele até chegar na verdade.

No seriado, que tem uma direção de arte e figurino impecáveis, a concepção da realidade a partir dos olhos da personagem de Grace se modifica conforme seus sentimentos internos. As paisagens novaiorquinas se transformam, na mesma velocidade com que Grace troca seus glamurosos casacos, do bucólico cartão postal de outono para uma atmosfera assustadora de suspense com a ajuda da iluminação e fotografia. 

Ao final, assim como acontece com Grace, a vida não passa de um conjunto de narrativas que permeiam nossa realidade, das quais escolhemos ou aceitamos acreditar em algumas delas. Por vezes, podemos nos enganar consciente ou inconscientemente. As vezes, o tempo é suficiente para desanuviarem nossa visão, apaziguarem nossos corações e iluminarem nossas mentes. Em outros casos, não, e passamos uma vida inteira criando novas narrativas para justificarem nossas escolhas e ações inconsequentes.

Crítica por: Fabio Yamada 

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