Crítica: A Bela da Tarde

"A BELA DA TARDE" - 1967

Um dos filmes mais poderosos e instigantes que já assisti. 

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Uma verdadeira obra-prima de Buñuel com a atuação inesquecível de Catherine Deneuve que tem sua beleza eternizada pelas lentes do diretor, que a princípio nem a queria no filme.

Diante dos resultado final do filme e da carreira posterior da atriz (que na época tinha apenas 23 anos) fica praticamente impossível imaginar qualquer outra atriz para o papel de Séverine. Uma linda, fria e sofisticada esposa muito bem vestida (o figurino inteiro desenhado por Yves Saint Laurent) que abandona seu lar e belo marido Pierre (Jean Sorel) todas as tardes para se despir no bordel da madame Anais (Geneviève Page).

Séverine aparentemente tem uma vida perfeita, mora em um lindo e imenso apartamento, casada com seu lindo doutor e dona de uma beleza intimidadora, admirada por outros homens e invejada por outras mulheres. No entanto, não resiste a pulsão de frequentar um bordel e se entregar submissamente aos desejos de homens que em teoria não estariam a sua altura, sejam pelos atributos físicos, culturais ou sociais. 

Alguns poderiam alegar que ela tornou-se uma prostituta pois sofreu abuso durante a infância, devido algumas imagens de flashback que o diretor insere na trama. Outros poderiam defender que trata-se de uma auto-flagelação, pois ela tem de se punir por justamente não se sentir satisfeita com a vida que tem. Os mais machistas poderiam falar que como ela não tem prazer com o marido, ela busca se satisfazer em outro local.

No entanto, estamos falando de um filme do mestre do surrealismo, que inicia sua obra com uma cena com Séverine e Pierre passeando de carruagem por um parque ao sons de guizos e chicotes. Pierre, de repente, reclama que a esposa é fria e pede para que os cocheiros parem a carruagem. Eles levam Séverine para a floresta, amarram ela a um tronco, tiram suas roupas e a chicoteiam. O maravilhoso rosto de Séverine vai se transformando de uma expressão de indignação e medo para o mais puro prazer. É simplesmente fantástico. Uma cena inesquecível. 

Trata-se de um sonho supostamente, pois vemos logo em seguida nossa protagonista despertar na cama. Ela é masoquista, pensamos. Será tão simples assim? Ou será que ela se sente culpada e precisa de punição? Ou será uma crítica social, onde a burguesia precisa esboçar sua dor e pesares para se sentir menos culpada? Ou não será nada disso e apenas um sonho sem sentido como todos os são verdadeiramente?

Muitos críticos ficam se perguntando quem é a verdadeira Séverine, a esposa sofisticada e esnobe ou a prostituta liberada e submissa. Mas por que não podemos ser os dois? Por que alguns ainda acreditam que exista um verdadeiro e único eu, diante de tantas possibilidades e máscaras que a sociedade no impõe? Por que não virar o jogo e simplesmente desfrutar dessa possibilidade de ser um ser multifacetado, ao invés de buscar incansavelmente essa essência imutável do eu interior? Como se por acaso em algum momento uma pessoa que se encontrasse em seu estado de eu verdadeiro a tornaria mais valiosa e única? Se isso fosse verdade, não poderíamos acreditar na possibilidade de mudarmos, de nos aperfeiçoarmos e de aprendermos com nossos erros? Teoricamente já nasceríamos mortos, definidos e, possivelmente, únicos.

Os sonhos nos permitem transformar em outros e realizar ações que não faríamos na vida real. Ações que para a maioria das outras pessoas não teriam o menor sentido. Talvez essa seja a idéia dessa obra-prima, a ousadia de não se encaixar, de não se fechar ou a de não abrir a misteriosa caixa dos prazeres. 

Afinal quem somos nós para definir o que dá prazer à Séverine ou a qualquer outra pessoa? Por que assim como Husson (Michel Piccoli), nós nos sentimos no direito de interrogar e chantagear Séverine sobre suas razões e segredos? Por que, mesmo como espectadores, queremos dar um sentido completo ao filme de Buñuel, que como poucos ousa transformar seus sonhos em realidade?

As pessoas sempre querem catalogar, aparar as arestas e colocar dentro de uma caixinha. Esse tendência reducionista da humanidade que acredita que ao rotular os elementos e fenômenos do universo, será capaz de compreende-lo melhor. Separando por cores, tamanhos, pesos. Utilizando-se de tabelas, réguas e padrões. Supondo associações e reações de causa-efeito que muitas vezes não existem.

Um dia poderemos descobrir que realmente a vida é um fenômeno único, que deve ser vivida de uma forma sem limitações ou preconceitos, mas infelizmente acredito que estamos cada vez mais distante disso.


Crítica por:  Fabio Yamada.

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